Texto I
As três experiências
Há três coisas para as quais eu nasci e para as
quais eu dou a minha vida. Nasci para amar os outros,
nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos.
“O amar os outros” é tão vasto que inclui até o
5 perdão para mim mesma com o que sobra. As três
coisas são tão importantes que minha vida é curta
para tanto. Tenho que me apressar, o tempo urge.
Não posso perder um minuto do tempo que faz minha
vida. Amar os outros é a única salvação individual
10 que conheço: ninguém estará perdido se der amor e
às vezes receber amor em troca.
E nasci para escrever. A palavra é meu domínio
sobre o mundo. Eu tive desde a infância várias vo-
cações que me chamavam ardentemente. Uma das
15 vocações era escrever. E não sei por que, foi esta
que eu segui. Talvez porque para outras vocações
eu precisaria de um longo aprendizado, enquanto
que para escrever o aprendizado é a própria vida se
vivendo em nós e ao redor de nós. É que não sei
20 estudar. E, para escrever, o único estudo é mesmo
escrever. Adestrei-me desde os sete anos de idade
para que um dia eu tivesse a língua em meu poder.
E no entanto cada vez que eu vou escrever, é como
se fosse a primeira vez. Cada livro meu é uma estreia
25 penosa e feliz. Essa capacidade de me renovar toda
à medida que o tempo passa é o que eu chamo de
viver e escrever.
Quanto aos meus filhos, o nascimento deles não
foi casual. Eu quis ser mãe. Meus dois filhos foram
30 gerados voluntariamente. Os dois meninos estão
aqui, ao meu lado. Eu me orgulho deles, eu me re-
novo neles, eu acompanho seus sofrimentos e an-
gústias, eu lhes dou o que é possível dar. Se eu não
fosse mãe, seria sozinha no mundo. Mas tenho uma
35 descendência, e para eles no futuro eu preparo meu
nome dia a dia. Sei que um dia abrirão as asas para o
voo necessário, e eu ficarei sozinha. É fatal, porque a
gente não cria os filhos para a gente, nós os criamos
para eles mesmos. Quando eu ficar sozinha, estarei
40 seguindo o destino de todas as mulheres.
Sempre me restará amar. Escrever é alguma
coisa extremamente forte mas que pode me trair e
me abandonar: posso um dia sentir que já escrevi o
que é meu lote neste mundo e que eu devo aprender
45 também a parar. Em escrever eu não tenho nenhuma
garantia. Ao passo que amar eu posso até a hora de
morrer. Amar não acaba. É como se o mundo esti-
vesse a minha espera. E eu vou ao encontro do que
me espera.
50 [...]
LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo.
Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 101-102. Adaptado.
Texto II
Pronominais
Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
5 Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro
ANDRADE, Oswald. Pronominais. In: MORICONI, Ítalo (Org.). Os cem
melhores poemas do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 35.
Tanto o Texto I quanto o Texto II defendem, de maneira subentendida, um modo de ver a língua, em que ela se
constrói a partir de regras que definem as noções de “certo” e “errado”.
pauta em regras padrões baseadas no uso individual.
resume às regras prescritas pela gramática normativa.
constitui no uso que dela fazemos em nossa vida cotidiana.
forma por meio das regras estabelecidas pela norma-padrão.