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Texto IIAndo meio desligadoAndo meio desligadoEu nem sinto meus pés no chãoOlho e não v...

Texto II


Ando meio desligado


Ando meio desligado

Eu nem sinto meus pés no chão

Olho e não vejo nada

Eu só penso se você me quer

5 Eu nem vejo a hora de lhe dizer

Aquilo tudo que eu decorei

E depois o beijo que eu já sonhei

Você vai sentir, mas...

Por favor, não leve a mal

10 Eu só quero que você me queira

Não leve a mal


BAPTISTA, A.; LEE, R.; DIAS, S. Ando meio desligado. Intérprete:

Os Mutantes. In: MUTANTES. A divina comédia ou Ando meio

desligado. Rio de Janeiro: Polydor/Polyfar. p1970. 1 disco sonoro,

Lado 1, faixa 1 (3 min 2s).





Texto I


Um pouco distraído


Ando um pouco distraído, ultimamente. Alguns

amigos mais velhos sorriem, complacentes, e dizem

que é isso mesmo, costuma acontecer com a idade,

não é distração: é memória fraca mesmo, insuficiên-

5 cia de fosfato.

O diabo é que me lembro cada vez mais de coisas

que deveria esquecer: dados inúteis, nomes sem

significado, frases idiotas, circunstâncias ridículas,

detalhes sem importância. Em compensação, troco

10 o nome das pessoas, confundo fisionomias, ignoro

conhecidos, cumprimento desafetos. Nunca sei onde

largo objetos de uso e cada saída minha de casa

representa meia hora de atraso em aflitiva procura:

quede minhas chaves? meus cigarros? meu isquei-

15 ro? minha caneta?

Estou convencido de que tais objetos, embora

inanimados, têm um pacto secreto com o demônio,

para me atormentar: eles se escondem.

Recentemente, descobri a maneira infalível de

20 derrotá-los. Ainda há pouco quis acender um cigarro,

dei por falta do isqueiro. Em vez de procurá-lo freneticamente,

como já fiz tantas vezes, abrindo e fechando

gavetas, revirando a casa feito doido, para acabar

plantado no meio da sala apalpando os bolsos vazios

25 como um tarado, levantei-me com naturalidade sem

olhar para lugar nenhum e fui olimpicamente à cozinha

apanhar uma caixa de fósforos.

Ao voltar — eu sabia! — dei com o bichinho ali

mesmo, na ponta da mesa, bem diante do meu nariz,

30 a olhar-me desapontado. Tenho a certeza de que ele

saiu de seu esconderijo para me espiar.

Até agora estou vencendo: quando eles se escondem,

saio de casa sem chaves e bato na porta

ao voltar; compro outro maço de cigarros na esquina,

35 uma nova caneta, mais um par de óculos escuros; e

não telefono para ninguém até que minha caderneta

resolva aparecer. É uma guerra sem tréguas, mas hei

de sair vitorioso. [...]

Alarmado, confidenciei a um amigo este e outros

40 pequenos lapsos que me têm ocorrido, mas ele me

consolou de pronto, contando as distrações de um

tio seu, perto do qual não passo de um mero principiante.

Trata-se de um desses que põem o guarda-chu-

45 va na cama e se dependuram no cabide, como manda

a anedota. Já saiu à rua com o chapéu da esposa

na cabeça. Já cumprimentou o trocador do ônibus

quando este lhe estendeu a mão para cobrar a passagem.

Já deu parabéns à viúva na hora do velório

50 do marido. Certa noite, recebendo em sua casa uma

visita de cerimônia, despertou de um rápido cochilo

e se ergueu logo, dizendo para sua mulher: “Vamos,

meu bem, que já está ficando tarde.” [...]

Contou-me ainda o sobrinho do monstro que sair

55 com um sapato diferente em cada pé, tomar ônibus

errado, esquecer dinheiro em casa, são coisas que

ele faz quase todos os dias. Já lhe aconteceu tanto

se esquecer de almoçar como almoçar duas vezes.

Outro dia arranjou para o sobrinho um emprego num

60 escritório de advocacia, para que fosse praticando,

enquanto estudante.

— Você sabe — me conta o sobrinho: — O que eu

estudo é medicina...

Não, eu não sabia: para dizer a verdade, só ago-

65 ra o estava identificando. Mas não passei recibo —

faz parte da minha nova estratégia, para não acabar

como o tio dele: dar o dito por não dito, não falar mais

no assunto, acender um cigarro. É o que farei agora.

Isto é, se achar o cigarro.


SABINO, F. Deixa o Alfredo Falar. Rio de Janeiro: Record, 1976.



A frase em que o verbo andar apresenta as mesmas características sintáticas e de sentido que ocorrem nas expressões “ando um pouco distraído” e “ando meio desligado” é:

A

Ando depressa demais.

B

Há carros que andam a 300 km por hora.

C

Eu tenho andado com muita sede nestes dias.

D

Há aves que andam, além de voarem.

E

Para me exercitar, prefiro andar a correr.